O bloqueio de quase R$ 30 bilhões nas despesas do Orçamento já impõe uma espécie de “shutdown branco” aos ministérios por falta de recursos, uma paralisia da máquina pública que pode se agravar a partir de agosto. Algumas áreas já sentem os efeitos do arrocho fiscal, como ciência e tecnologia, bolsas de estudos, repasses do Minha Casa Minha Vida, tarifas bancárias, o Censo Demográfico e até mesmo os compromissos do governo brasileiro com organismos internacionais.
A situação tende a piorar e começar afetar áreas mais sensíveis para a população nos próximos meses porque até agora a área econômica não vê nenhum sinal de melhora na arrecadação ou alívio significativo nas despesas, o que poderia abrir espaço para o desbloqueio orçamentário e dar um “fôlego” de sobrevivência aos órgãos.
O governo já tenta mapear quais ministérios enfrentarão primeiro o risco de um colapso, e o tema foi debatido em reunião da Junta de Execução Orçamentária (JEO) na última semana.
Técnicos do governo ouvidos pelo Estadão/Broadcast avaliam que julho vai ser o mês limite para algumas pastas. É quando se prevê que não será possível barrar os efeitos mais nocivos do shutdown, como ocorreu em 2017. Durante o governo Michel Temer, a população ficou sem emissão de passaporte, houve suspensão das atividades de escolta e fiscalização da Polícia Rodoviária Federal e o atendimento das agências do INSS ficou prejudicado.
A equipe econômica corre para buscar receitas e reduzir despesas, como de subsídios, mas já precisa resolver problemas mais imediatos, como a liberação de R$ 2,8 bilhões para o Minha Casa Minha Vida, manutenção de estradas e atender a demandas dos caminhoneiros, que ameaçam entrar em greve. Para isso, terá de fazer um aperto adicional em outros ministérios. O Congresso também pressiona para liberar as suas emendas, que foram contingenciadas.
Diante da pressão do setor da construção civil, o Ministério da Economia precisou entrar em campo para evitar um estrangulamento financeiro das empresas, que estavam entregando as casas sem receber do governo. A equipe econômica arrumou um extra de R$ 800 milhões para o Minha Casa Minha Vida. Mas o ministro de Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, já avisou que o dinheiro a mais acaba em junho. A pasta disse em nota que “o governo federal já estuda a possibilidade de novos aportes de recursos para o programa no segundo semestre”.
Os recursos para a área científica são os mais afetados com o corte de 42%. O funcionamento das agências de fomento à pesquisa do governo, como CNPq, Finep e Capes, está ameaçado pela falta de dinheiro. O presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras de Azevedo, já alertou que o dinheiro só garante o pagamento das bolsas de pesquisa até setembro. O Museu Emílio Goeldi, que fica no Pará e é o segundo mais antigo do País, pode fechar as portas ao público.
Em recente audiência pública na Câmara, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, não escondeu o descontentamento e afirmou que a área ficou “com a corda no pescoço” após o corte no orçamento. A pasta informou em nota que tem atuado junto ao Ministério da Economia para “maior disponibilização de recursos” e que mantém diálogo com seus gestores para tentar minimizar o impacto nas atividades.
Em outras frentes, o governo já começou a dar calote: tem uma dívida de cerca de R$ 400 milhões com a Caixa Econômica Federal em tarifas bancárias cobradas pelo banco para gerir os programas federais. Procurada, a Caixa não respondeu sobre os atrasos e informou apenas que suas instâncias de controle e governança “controlam para que nenhuma pendência permaneça desatendida.”
O Brasil também tem dívidas que chegam a R$ 4 bilhões com organismos internacionais, sendo cerca de R$ 2 bilhões com a Organização das Nações Unidas (ONU) e mais um R$ 1 bilhão com o Banco dos Brics (que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O passivo que pode chegar a R$ 6,2 bilhões até o fim deste ano, mas o Orçamento só prevê R$ 532,9 milhões para esses pagamentos. O calote internacional do governo brasileiro já traz constrangimentos para o País.
Fontes afirmam que o programa de financiamento estudantil, o Fies, pode também sofrer problemas nos próximos meses. O Ministério da Educação não respondeu sobre o Fies. A pasta disse que trabalha para ampliar seus limites e fazer a “cobertura completa de suas despesas discricionárias”, atendendo às necessidades de financiamento mais imediatas e prioritárias.
O IBGE também precisou deixar mais enxuto o Censo Demográfico 2020 – a mais ampla pesquisa de dados sobre a população brasileira – para não inviabilizar o levantamento. O custo total da pesquisa seria de R$ 3,4 bilhões, mas o questionário está sendo reduzido para caber num orçamento 25% menor.
Os ministérios têm liberdade para escolher o que cortam primeiro. Por isso, uma das estratégias também é reduzir despesas em áreas mais sensíveis para chamar a atenção e pressionar o governo a tentar buscar uma solução.
Para o coordenador do Observatório de Política de Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), Manoel Pires, o setor público já vive um “shutdown branco”. Ele destaca que, na apresentação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 o governo reduziu ainda mais a previsão das despesas discricionárias (que não são obrigatórias) para este ano, de R$ 90 bilhões para R$ 86,1 bilhões, um valor já considerado crítico para o funcionamento da máquina. Mesmo antes do corte, segundo Pires, os órgãos já sentiram o arrocho no primeiro bimestre, não só pelo fato de ser uma nova administração, mas também pela restrição orçamentária, com reflexos no funcionamento de universidades, hospitais e na distribuição de livros didáticos.
“Tem vários hospitais que não conseguem atender a população, e o tempo médio que o brasileiro fica na fila aumenta”, diz Pires.
“Tem vários elementos que indicam que, de certa forma, com esse nível de despesa discricionária, a gente está funcionando em algum nível de paralisia, de shutdown, como se costuma dizer”, acrescenta o economista. Para ele, esse tipo de situação tem sido cada vez mais recorrente, e o maior problema são os investimentos, que continuam no menor nível histórico. O derretimento das projeções de alta do Produto Interno Bruto (PIB), que afeta a arrecadação de tributos, só agrava a situação.
Para tentar amenizar o quadro de colapso, o governo trabalha para tentar garantir a privatização da Eletrobrás e o megaleilão das áreas de petróleo do pré-sal ainda este ano. Só quando houver certeza de que esse dinheiro vai ingressar ainda em 2019 nos cofres do Tesouro é que a equipe econômica poderá incluir os recursos bilionários na previsão do Orçamento.
“Se o acordo da cessão onerosa for viável nesse ano será possível mudar isso, mas me parece que essa situação ficará crítica já no meio do ano”, afirma Pires.
Estadão