Caso Beatriz: mãe de criança assassinada com 42 facadas vai caminhar 712 km

Em mais uma tentativa desesperada de ser ouvida pelo governador, Lucinha, como é chamada carinhosamente por todos na região, saiu de Petrolina — cidade cenário do crime — no último dia 5, com destino ao Recife. A missão é ir a pé até o Palácio das Princesas, sede do governo do estado, para pedir justiça por Beatriz.

Foi um ano inteiro de preparação física. O treinamento que, antes, era só para amenizar o estresse, se intensificou com a nova meta. E nessa rota Lucinha não vai só: cada passo é dado com o apoio de duas amigas que seguem ao seu lado — o que não elimina seu cansaço. “O corpo dói, os pés doem, mas o que dói mais, pode ter certeza, é tirarem um filho da gente”, desabafa.

A bancária Daniliria Cavalcante, 34, faz parte dessa rede de apoio desde o início. “A gente não imaginava que isso fosse se estender tanto”, comenta sobre o caso não solucionado. Ela pediu licença do trabalho para acompanhar Lucinha todos os dias. Ao lado, também vai a aposentada Ana Novaes, que mora no Recife e viajou de avião até Petrolina para fazer o retorno a pé. “Eu me espelho de alguma forma, apesar de não conseguir sentir na pele o quão profunda é a dor”, diz Deniliria.

Por dia, as amigas caminham entre 20 km e 40 km, a depender da distância entre uma localidade e outra. O sol forte da região impede que o trajeto se estenda muito ao longo do dia. É necessário sair cedo para aguentar chegar até a próxima parada.

Um carro vai acompanhando Lucinha. No comando do apoio está o marido e pai de Beatriz, Sandro Romildo, que conta com a ajuda de mais dois amigos. “Podemos passar 30, 60, 90 dias… uma hora ele [o governador] vai ter que nos atender, uma hora ele vai ter que enfrentar o problema. Chega de indiferença, chega de injustiça, chega de impunidade, chega de incompetência”, pede.

No acostamento, ao lado de carros, caminhões e ônibus, que passam buzinando como forma de apoio à causa, ela segue viagem até sumir na linha do horizonte. Na bagagem, a mãe carrega muitas lembranças da filha. “Comigo, no meu corpo, levo apenas recordações de Beatriz”, conta.

O crime

Beatriz Angélica Mota Ferreira da Silva foi encontrada esfaqueada dentro de um tradicional colégio de freiras em 2015 — e o motivo do crime nunca foi revelado. Na ocasião, ela estava acompanhada da família para comemorar a formatura de ensino médio da irmã mais velha.

A noite de festa foi interrompida quando o pai, que era professor na escola, subiu ao palco e começou a chamar por sua filha no microfone. “Beatriz, ô minha filha, onde você tá?”, dizia, já angustiado. Enquanto ele clamava por ajuda, a festa continuava — alguns convidados mais animados não queriam parar a celebração.

Instantes depois, as pessoas começaram a sair da pista de dança. O som parou e os gritos de desespero ressoaram pelo local. Era o choro das primeiras pessoas ao encontrarem o corpo da menina.

Beatriz foi vista pela última vez em imagens de uma câmera de segurança, às 21h59, quando se afastou da mãe para ir até o bebedouro do colégio. Foram poucos minutos até ela ser encontrada sem vida atrás de um armário, em uma sala de material esportivo, que fica ao lado da quadra de esportes onde se realizava a festa. O grande mistério é que não havia sangue no local, o que aponta que a menina não foi morta ali. O enigma nunca foi solucionado.

A criança estava com uma faca do tipo peixeira cravada no abdômen e apresentava ferimentos no tórax, nos braços e nas pernas. Mais de duas mil pessoas estavam no local e ninguém viu o crime acontecer. O pesadelo de Lucinha tirou o sono de todos na região naquela noite.

Coração de mãe

Antes de pegar estrada para seu protesto peregrinador, Lucinha foi receber as bênçãos de Dona Maria, sua mãe. Nas cidades por onde passa, ela vai colhendo memórias de outras mães que perderam os filhos de forma violenta.

“Como que a gente vai ter paz se os assassinos dos nossos filhos estão convivendo normalmente dentro de uma sociedade?”, questiona após passagem pela comunidade de Nova Descoberta. Lá ela abraçou Dona Deusa, que teve dois filhos assassinados em uma chacina que, até hoje, cinco anos depois, também não foi esclarecida.

Nesses encontros, ela colhe documentos e promete levá-los ao governador para pedir por todas. Por videochamada, Lucinha conversou com Mirtes Renata, a mãe do menino Miguel, morto em um condomínio de luxo no Recife em junho do ano passado. Marcaram de se encontrar na capital e caminharem juntas no percurso final.

“Essa caminhada representa a luta de todas essas mães que estão em busca de justiça”, declara Lucinha.

Lucinha e suas companheiras de peregrinação Imagem: Adriano Alves/UOL 

Apoio popular

Depois dos primeiros 300 km de caminhada, alcançados na última terça (14), as dores físicas ficaram mais intensas para Lucinha. Em cada parada, compressas de gelo ajudam as pernas e os pés cansados. “Dói muito, parece que o pé está torando no meio”, confessa.

A mãe conta que o apoio que vem recebendo da sociedade é o que torna a missão espiritualmente mais leve. A saída com pouco mais de 50 pessoas no primeiro trecho foi ganhando novas vozes com o passar dos dias. As comunidades saem às ruas para acompanhar a caminhada, ainda que seja por poucos metros.

Cidades inteiras estão se mobilizando no estado. Um corredor humano foi formado na passagem por Belém do São Francisco e crianças da faixa etária de Beatriz erguiam faixas de apoio à causa. A população de Cabrobó organizou outdoors e uma piscina de gelo para ajudar. Em Floresta, os indígenas Pankará fizeram o soar dos chocalhos somarem aos gritos da mãe.

Eles se juntam ao grupo que vem acompanhando os pais desde o dia do crime. O #SomosTodosBeatriz já organizou diversas ações e, na pandemia fez muitas lives, criando um perfil no Instagram que já conta com mais de 100 mil seguidores.

A trecho do caminho, novos apoiadores se aproximam. Grupos diversos, de jovens estudantes e motoqueiros a religiosos. “É a resposta que eu precisava”, diz Lucinha, que deve chegar ao destino entre os dias 25 e 30 deste mês.

A peregrinação em memória de Beatriz Angélica Imagem: Adriano Alves/TAB.

Crimes do crime

Desde o dia do assassinato de Beatriz, muitas janelas ficaram entreabertas nas investigações. Após o ocorrido, os portões da escola não foram imediatamente fechados pela polícia, permitindo que as pessoas entrassem e saíssem do colégio. Também nunca foi explicado como alguém teve acesso a uma área que estava desativada após um incêndio — e que tinha cadeados.

A família também aponta outros erros, como as imagens das câmeras de segurança que foram apagadas por um prestador de serviços do colégio. Ele chegou a ser autuado, mas está solto. Uma sala próxima ao local do crime foi reformada dias depois, o que pode ter atrapalhado as investigações. Muitos delegados passaram pelo caso sem conseguir avançar com o inquérito.

A morosidade das investigações fez a família pedir diversas vezes a federalização do caso, por acreditarem que há falta de infraestrutura e corrupção dentro da Polícia Civil de Pernambuco. “A gente tinha que acreditar na polícia, porque é isso que a gente tem, mas infelizmente a realidade é diferente. Eu não entendia porque as pessoas não acreditam na Justiça, hoje eu entendo. Há impunidade, é como se o crime compensasse”, diz Lucinha.

Em setembro de 2020, uma agência de peritos criminais dos Estados Unidos se ofereceu para colaborar nas investigações. Mais de um ano depois, ainda não houve resposta por parte da Polícia Civil de Pernambuco, mesmo com mediação da embaixada americana.

O inquérito, ainda em curso, já conta com 23 volumes. Em nota à reportagem do TAB, a PC-PE destacou que o caso segue sob segredo de justiça. Afirma que está comprometida com a investigação e que não há registro de negativa de recursos para tal.

Mesmo sem autorização oficial, os peritos estão ajudando a família, ensinando como enxergar o mundo da criminologia a partir de suas experiências. É deles a autoria do retrato falado mais recente do suspeito, que é divulgado em panfletos durante toda a caminhada por Pernambuco.

O retrato falado do suspeito pelo assassinato de Beatriz Imagem: Adriano Alves/UOL.

O pai, Sandro, conta com a voz embargada que a ausência da filha mexeu muito com eles — que tinham uma família centralizada nos filhos e, agora, ficou um espaço vazio. “Nós não vamos parar. Essa é uma luta pela qual vamos doar nossas vidas e, custe o que custar, obteremos uma resposta.

Uol

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