Passada a ressaca da derrota por 6 a 5 sofrida no Supremo Tribunal Federal que tirou da cadeia detentos célebres, entre eles o ex-presidente Lula, começou imediatamente um movimento para tentar reverter no Congresso o fim da prisão em segunda instância. Apesar de ter sido decisivo no desempate da votação recente do STF sobre o tema, o presidente da Corte, Dias Toffoli, deu uma sinalização de esperança ao declarar que “não cabe ao Judiciário alterar a lei, mas ao Congresso”, passando a discussão para o Legislativo. Será uma longa batalha. Mesmo os mais otimistas com a possível revisão reconhecem que isso é impossível a curto prazo. Fator considerado fundamental no processo, a pressão popular ainda é tímida se comparada às megamanifestações pró-impeachment de 2015 e 2016 — no último sábado, 9, movimentos como Vem pra Rua e Brasil Livre voltaram às ruas para defender a prisão em segunda instância, com pixulecos e caixões funerários representando o STF. No maior protesto do dia, os grupos não conseguiram unir as duas concentrações e encher a Avenida Paulista, em São Paulo. Ainda assim, ele serviu para mandar um recado claro e manter a chama acesa.
Na próxima quarta, 20, deve avançar uma das alternativas mais promissoras para a virada (veja o quadro abaixo): a PEC 410/2018, que altera o artigo 5º da Constituição — de que ninguém é culpado “até o trânsito em julgado” para “até a confirmação de sentença em grau de recurso” —, deve ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A previsão é que, combinada com um texto paralelo que diminui as chances de recurso, a PEC passe com pelo menos 38 votos favoráveis. O relator da proposta, o deputado Alex Manente (Cidadania-SP), está empolgado, mas admite que a aprovação definitiva (se ela vier) ficará para 2020 e ainda vai demandar “intenso convencimento de deputados e mobilização nas ruas”. Depois de passar pela CCJ, a emenda constitucional terá de ser avaliada por uma comissão especial, que precisa realizar no mínimo quarenta sessões — o recesso parlamentar começa em dezembro e só acaba no fim de janeiro.
Um dos fatores que provocaram distorções na discussão sobre a prisão em segunda instância foi a condenação de um ex-presidente por corrupção. Até hoje, por muitas vezes, a questão fica reduzida ao debate em torno do Lula livre. Só na CCJ já foram consumidas mais de vinte horas de bate-bocas, com a fala de 108 parlamentares e a oposição, com os petistas à frente, lançando mão dos “kits obstrução” para inverter a ordem do dia ou tirar a matéria da pauta. Outro problema foi a forte associação da Lava-Jato com o tema. À luz das revelações do site The Intercept Brasil em parceria com veículos como VEJA segundo as quais o então juiz Sergio Moro desequilibrou a balança da Justiça agindo ao lado da acusação, os graves problemas na atuação da Força Tarefa passaram a ser utilizados como argumento de que era preciso rever a condenação em segunda instância. Apesar dos excessos, que devem ser devidamente julgados, é inegável que a operação inaugurou um novo padrão de sucesso no combate aos chamados crimes de colarinho-branco. Desde 2014, pelo menos quarenta réus acabaram nas grades, incluindo Lula e outros peixões graúdos da política nacional, além de boa parte do baronato das empreiteiras.
A sociedade não vê com bons olhos a volta dos tempos em que políticos e empresários corruptos, valendo-se dos melhores advogados e de um arsenal inesgotável de recursos, conseguiam escapar da punição. Os parlamentares não são indiferentes ao clamor da população, é claro, mas sempre pensam antes no próprio umbigo. A questão agora é saber se a classe vai formar maioria para mudar uma regra que pode representar um tiro no próprio pé. Um em cada três deputados (178 no total) na Câmara responde a inquéritos no Supremo Tribunal Federal, boa parte nos processos do mensalão e petrolão. E eles sabem que poderão enfrentar uma situação semelhante à de Lula caso a mudança seja aprovada. Ninguém admite isso em público, mas nos bastidores já há movimentações para abafar a PEC de Manente. Na segunda passada, 11, o PL, que tem quinze investigados, excluiu da CCJ o deputado Capitão Augusto (SP). Antes da decisão final do STF, ele havia entregado a Dias Toffoli um abaixo-assinado com 87 assinaturas a favor da prisão em segunda instância. A cúpula do PL substituiu o Capitão na CCJ pelo deputado Giovani Cherini (RS), que é contrário à revisão do assunto. Para ser aprovada no Congresso, a PEC precisa ter pelo menos três quintos dos votos na Câmara (308) e no Senado (49). O caminho na segunda Casa parece um pouco mais tranquilo, uma vez que 43 senadores se declararam favoráveis à medida em carta também entregue a Toffoli.
Se houvesse um campeonato de mudanças de entendimento sobre a prisão em segunda instância em curto espaço de tempo, o Brasil seria recordista mundial. O artigo 5º da Constituição de 1988 diz que “ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado”, ou seja, quando não há mais possibilidade de recursos. De 1988 até 2009, no entanto, cada juiz decidia individualmente se o réu deveria ou não ser preso após a condenação em segunda instância. Naquele ano, o Supremo resolveu reforçar a orientação do artigo 5º, definindo que o réu só poderia ser preso quando acabassem todos os recursos. Esse posicionamento durou até 2016, no auge da Operação Lava-Jato, quando a Corte passou a permitir o cumprimento da pena após o segundo grau. No dia 7, o Supremo reviu a postura.
Esse posicionamento vai na contramão do que é praticado no mundo. Os principais países democráticos permitem a prisão em segunda instância. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, os réus chegam a ser presos até antes do julgamento, após se declararem culpados. Na Alemanha, França e Itália, o cumprimento da pena ocorre em segundo grau, com um detalhe: na primeira instância, não é um juiz sozinho que decide, mas um colegiado. Os especialistas destacam que até existem países nos quais a pena só começa depois do “trânsito em julgado”, mas não há nenhum no mundo que tenha quatro instâncias como o Brasil.
A cúpula do Congresso está dividida quanto ao tema da segunda instância. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, vem dando sinais simpáticos à ideia e até sugeriu ao deputado Manente alguns caminhos para contornar obstáculos para a aprovação da sua PEC. O par de Maia no Senado, Davi Alcolumbre, é mais resistente à medida. Na terça 12, ironizou o barulho que os colegas estavam fazendo em cima da matéria, propondo uma “solução” radical. “A gente podia fazer uma nova Constituinte, e todo mundo renuncia ao seu mandato e faz logo uma nova Constituinte, se essa é a prioridade”, disse. Há uma manifestação prevista para ocorrer na Avenida Paulista no próximo dia 17, com o objetivo de fazer o caldeirão das ruas atingir o ponto de fervura ideal para permitir a virada do jogo. Os entraves são enormes, mas o Brasil precisa de uma vez por todas resolver a questão de qual regra vale para combater e punir o crime. Colocar na cadeia depois de um julgamento rápido e justo os poderosos que andaram fora da linha foi uma das melhores ideias que surgiram por aqui nos últimos anos. Seria bom continuar seguindo esse caminho.
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