Os Campos de guerra do clã Arraes

1579952360505

Brigas, ciúme e divergências políticas marcam a rotina da casta de Miguel Arraes em Pernambuco após a morte de seu neto e herdeiro político.

A escadaria de mármore no centro do salão de entrada do Palácio do Campo das Princesas separa duas placas afixadas em homenagem a governadores que comandaram Pernambuco daquele prédio quase bicentenário, no Recife. Do lado esquerdo, Eduardo Campos inaugurou em 2009 o símbolo da reverência ao avô materno: “Neste palácio, o governador Miguel Arraes de Alencar resistiu ao golpe militar de 1º de abril de 1964, sendo deposto, preso e exilado, por se recusar a renunciar ao mandato popular que lhe fora outorgado pelos pernambucanos”. À direita, o próprio Eduardo foi o homenageado com a menção à data em que ele deixou o governo para concorrer à Presidência, meses antes de morrer num acidente aéreo no dia 13 de agosto de 2014. Na sombra da ausência do patriarca e de seu maior herdeiro, rachaduras no clã que há décadas comanda o poder no estado já cindiram os Arraes-Campos em três linhagens.

O clima era de confraternização naquele 23 de junho de 2014, dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo. A casa de campo do advogado e escritor Antônio Campos em Gravatá, cidade que ganhou o apelido de Suíça pernambucana, estava cheia de convidados ilustres para comemorar seu aniversário de 46 anos, a exemplo dos anteriores. Em campanha, Eduardo, seu único irmão, compareceu com a mulher, Renata, que levava o filho Miguel a tiracolo. A mãe, Ana Arraes, ministra do Tribunal de Contas da União (TCU) e ex-deputada federal, divertia-se abraçada à cantora Fafá de Belém. O prefeito do Recife, Geraldo Julio, subira a serra para prestigiar o aniversariante, assim como Paulo Câmara, que viria a ser eleito governador de Pernambuco naquele ano. Encontros como esse rarearam após a morte de Eduardo. Missas em sua memória ou aniversários passaram a ser marcados por cumprimentos protocolares e alguns constrangimentos.

Renata e Antônio nunca foram próximos, mas conviviam cordialmente em razão do elo familiar. Em janeiro de 2015, a presença do cunhado na celebração do primeiro ano de Miguel, caçula do casal Renata e Eduardo, incomodou particularmente a viúva. Uma testemunha contou que Antônio chegou ao evento aparentando embriaguez, com um grupo de amigos que não haviam sido convidados por Renata. O tio afirmou não se recordar desse episódio, mas revela que aquela foi a última vez em que compareceu ao aniversário do sobrinho. Miguel completará 6 anos na próxima terça-feira. A irritação da ex-primeira-dama já se sedimentava à medida que Tonca, como Antônio é conhecido no Recife, atuava como uma espécie de porta-voz da família no decorrer das investigações sobre a queda do avião, sem seu consentimento. Ele, por sua vez, reclama o direito de, como irmão, saber “a real causa” da tragédia sem precisar de autorização da cunhada. Avessa à imprensa, Renata não quis falar com ÉPOCA.

“‘ELA ORIENTOU O PSB A AGIR CONTRA MIM EM OLINDA. E A ORIENTAÇÃO DELA FOI SEMPRE ME ISOLAR, DESQUALIFICAR E ALIJAR’, DISSE ANTÔNIO, IRMÃO DE EDUARDO CAMPOS, SOBRE A CUNHADA E VIÚVA RENATA”

Marília Arraes, hoje deputada federal, estava em seu segundo mandato na Câmara de Vereadores do Recife em 2014. Neta de Miguel Arraes e prima do então governador Eduardo, era também correligionária de ambos, no PSB. Sua intenção declarada de disputar uma vaga em Brasília já naquele ano não encontrou guarida nos planos do líder da legenda, que já pensava em emplacar seu filho, João Campos, na política. A articulação de Eduardo para colocar o jovem de 20 anos no comando da Juventude Socialista Brasileira em Pernambuco, contra o grupo defendido por Marília, foi a gota d’água para que ela se insurgisse publicamente contra o primo e deixasse a sigla, migrando para o PT. Ganhou fama de “desagregadora”.

Foram os primeiros sinais externos de fissura no clã — ainda com Eduardo Campos, um notório conciliador, vivo. Renata nunca perdoou Marília pela rebeldia. Hoje, as duas mal se cumprimentam. No ano retrasado, Marília e João se elegeram para a Câmara dos Deputados — ele, o mais votado da história do estado, com mais de 460 mil votos, e ela, a segunda, com menos da metade. Em outubro deste ano, os dois poderão se reencontrar nas urnas na disputa pela prefeitura do Recife. João é o pré-candidato do PSB ao pleito, apesar de seu nome não ser consenso dentro do partido. Marília, por sua vez, tenta viabilizar sua candidatura em uma trama que envolve mágoas do passado e a busca pelo aval do ex-presidente Lula.

A cizânia seguia em fogo baixo até as eleições municipais de 2016. Tonca sempre ficara de fora da política, graças à hábil intervenção de Eduardo. Sua função era cuidar do escritório de advocacia da família e dos livros que escrevia. Em respostas por escrito, condição que impôs para falar com a reportagem, Antônio classificou o relacionamento fraternal como bom, mas apontou que vinha discordando do entorno de Eduardo nos últimos dois anos de seu governo. Após a morte do irmão, resolveu enfrentar as urnas contra a “terceirização do nome Campos e Arraes”, especialmente para Geraldo Julio e Paulo Câmara. “Achei necessário entrar nessa luta. Pode-se querer argumentar que foram escolhas dele, Eduardo, mas isso é um cenário com ele vivo, tendo o controle”, disse Tonca. Pelo PSB, ele disputou a prefeitura de Olinda, valendo-se da imagem da família. Chegou ao segundo turno com quase 10 mil votos de dianteira sobre o segundo colocado, mas levou uma virada e perdeu por mais de 30 mil votos.

Com a derrota, Antônio mergulhou em um poço de mágoas. Ressente-se principalmente do que considera falta de apoio e traição do partido e da cunhada Renata na eleição. “Ela orientou o PSB a agir contra mim em Olinda. E a orientação dela foi sempre me isolar, desqualificar e alijar”, reclamou o cunhado a ÉPOCA. Segundo um amigo, ele hoje nutre verdadeiro ódio pela viúva de Eduardo. “A família dela (Renata) é um caso de sucesso de desemprego zero. E quem não rezar na cartilha, ela manda para o pelourinho político”, atacou. Na cúpula da legenda em Pernambuco, a justificativa é mais prosaica: o irmão não tem, nem de longe, o carisma de Eduardo e passou a campanha atacando o então candidato da sigla à reeleição no Recife, Geraldo Julio.

Em 2018, dessa vez pelo Podemos, sigla em que o senador Álvaro Dias era o presidenciável, Tonca queria tentar uma vaga no Senado. Na última hora, no entanto, registrou o nome como candidato a deputado estadual e chegou a fazer campanha nas ruas de Olinda ao lado da prima Marília Arraes, com quem disse ter boa relação. Arrepende-se hoje de não ter retirado a própria candidatura. Recebeu apenas 3.658 votos, ou 0,08% dos válidos, ficando na 153ª colocação para 49 vagas. Alocado à direita do campo político, acabou sendo alçado em junho do ano passado à presidência da Fundação Joaquim Nabuco, órgão ligado ao Ministério da Educação. E ele não nega a convergência com o governo de Jair Bolsonaro. O neto de Miguel Arraes, que foi preso pela ditadura da qual o presidente faz vocal apologia, se disse um “liberal”, não fez críticas à defesa do regime militar e afirmou que seu avô “sempre teve uma relação respeitosa com as Forças Armadas, quando voltou do exílio”.

O distanciamento pessoal, as divergências políticas e a falta de uma figura conciliadora, como Eduardo Campos, para equalizar os ímpetos e arroubos de uma das castas mais antigas da política brasileira culminaram na cena que se viu na Câmara dos Deputados em dezembro do ano passado, quando, durante uma audiência com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, o deputado João Campos atacou o chefe da pasta. Levou uma rápida invertida de Weintraub, que mencionou a proximidade de seu tio com o governo: “Se eu sou uma pessoa tão maligna, por que ele trabalha comigo?”, questionou. “Eu nem relação tenho com ele, ministro. Ele é um sujeito pior que você”, devolveu o jovem de 26 anos. A tréplica pegou de surpresa o círculo mais íntimo da família Campos, porque expôs ressentimentos que não habitavam a superfície da vida pública do clã. A fala de João contrariou a orientação recebida pelo deputado de não tornar a relação com o tio mais inflamável. Horas antes de jogar luz sobre o rompimento com o tio, João havia almoçado com a avó Ana em seu apartamento, em Brasília, e aproveitado para conhecer as instalações do TCU. O deputado se recusou a receber ÉPOCA no Recife. Não queria falar sobre “questões familiares”, informou sua assessoria.

“‘EU NEM RELAÇÃO TENHO COM ELE, MINISTRO. ELE É UM SUJEITO PIOR QUE VOCÊ’, DISSE JOÃO CAMPOS A ABRAHAM WEINTRAUB, REFERINDO-SE AO TIO ANTÔNIO”

Após o episódio na Câmara, Antônio divulgou uma nota acusando o filho de seu irmão de ter sido “nutrido na mamadeira da empresa Odebrecht, entre outras, estando com os bens patrimoniais dos quais é herdeiro bloqueados”. Desde o ano passado, o espólio de Eduardo Campos está bloqueado em ação de improbidade administrativa da Lava Jato. A ÉPOCA, Antônio afirmou que havia “preponderância excessiva da Odebrecht em Pernambuco”.

O irmão de Eduardo disse ainda ter procurado as “autoridades competentes” — ele não confirma se foi ao Ministério Público Federal (MPF) ou à Polícia Federal — para contar o que sabe sobre a cunhada e integrantes do PSB. Ele alegou que não pode dar mais detalhes para “não invalidar e frustrar atos”, mas antecipou que o que houve na Paraíba com o PSB — onde o ex-governador Ricardo Coutinho foi preso no fim do ano passado, na Operação Calvário — é pequeno diante do que poderá ocorrer em Pernambuco se as investigações sobre seus relatos forem levadas adiante.

Antônio disse que a relação com Renata era harmônica, especialmente até o primeiro governo de Eduardo, de 2007 a 2010, e afirmou nunca ter discutido pessoalmente com a cunhada ou um sobrinho. Lembrou que é, inclusive, padrinho da primogênita do casal, Maria Eduarda. Com João, a última conversa foi antes das últimas eleições municipais, há quatro anos. Ana Arraes não só concordou que o filho foi traído em 2016, como foi a primeira a apoiá-lo no embate com João. Ela reagiu declarando que não admite grosseria e que o neto a estava desrespeitando e “dividindo a família sem razão”. “Liderança se consegue construindo. O desrespeito fica para quem não tem argumentos”, escreveu, na ocasião. Em janeiro, voltou à carga e disse estar “indignada” e “revoltada” com a prepotência de João, com quem não se encontrou mais desde o episódio. “Espero que ele me peça desculpa. Se ele não me pedir e nem me procurar, o problema é dele. Quem me agrediu foi ele, eu nunca agredi nenhum neto. Pelo contrário, sempre fui avó”, declarou Ana a um blog local.

Num gesto que pode ser entendido como tentativa de desidratar o entrevero familiar, Ana Arraes insinuou ter a intenção de se candidatar ao governo do estado em 2022. “Eu sou filha de Miguel Arraes e mãe de Eduardo Campos. O nascedouro é meu”, disse, ao reclamar para si o espólio político do clã.

Um antigo auxiliar de Miguel Arraes contou a ÉPOCA que o patriarca adotava a máxima que aprendeu de um amigo argelino, durante o exílio, quando era instado a responder qual de seus dez filhos era o preferido: “Aquele que mais estivesse precisando dele”. Interlocutores do clã apontam que Antônio, de temperamento irascível e explosivo como o do pai, o poeta Maximiano Campos, sempre ocupou esse posto para Ana. “Mãe é mãe. Ela já perdeu um filho. Vai sempre ficar do lado do outro”, disse um amigo de Eduardo. No fim da década de 1980, por exemplo, o filho caçula foi protegido quando deu um tiro para cima dentro de um famoso bar do Recife, episódio que ele lamenta. “Foi um arroubo de um jovem, numa briga de bar, de que me arrependo. Não saiu ninguém ferido”, disse Tonca.

João ainda cursava engenharia civil na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) quando o pai morreu. No primeiro aniversário da tragédia, o jovem, então com 21 anos, roubou a cena ao discursar e citar o bisavô na inauguração da placa em homenagem a Eduardo no Campo das Princesas. “Ele foi um jovem de 49 anos que viveu mais do que tanta gente que tem o dobro da idade dele. Aprendeu com doutor Arraes a fazer política, a sentir o prazer de andar pelo interior e apertar a mão do trabalhador rural, dar um abraço numa professora do primário, gostar de sentir o cheiro de povo”, declarou. Em fevereiro de 2016, já formado — exigência da mãe —, assumiu a chefia de gabinete de Paulo Câmara (PSB). Era o primeiro passo para se viabilizar como o herdeiro político do clã. Até nisso procurou seguir o exemplo de Eduardo, que foi auxiliar do avô no mesmo palácio, no fim da década de 1980. No cargo, João aproveitou a experiência acumulada durante as campanhas do pai para receber, na antessala do governador, políticos e empresários pernambucanos.

Quando está no Recife, o deputado fica na casa da mãe, onde cresceu com os quatro irmãos. Desde a morte de Eduardo, assumiu o papel de “homem da casa”. O segundo mais novo, Pedro, passou em um concurso para a Companhia de Saneamento de Pernambuco em 2018, mas já é tido como sucessor natural do irmão mais velho, em caso de vitória em outubro. “Tem mais inteligência, talento e habilidade que João”, alfinetou Antônio. A primogênita, a arquiteta Maria Eduarda, foi nomeada em 2016 para o Instituto Pelópidas Silveira, da prefeitura do Recife, na gestão do ex-secretário do pai.

Filho de produtores rurais e egresso do interior do Ceará, onde nasceu em 1916, Miguel Arraes foi três vezes eleito para governar Pernambuco, em diferentes décadas, e morreu em 2005, aos 88 anos. Amigos lembram que Miguel Arraes nunca lançou nenhum dos filhos para a política, apesar de ter nomeado um deles e, na sequência, o neto Eduardo para ser seu chefe de gabinete no Palácio do Campo das Princesas. O edifício histórico, inaugurado em 1841, só ganhou esse nome anos depois, em homenagem à visita das filhas do imperador Dom Pedro II e em deferência à família real. Pernambuco ainda era uma província.

Revista Época

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *