Criado em março de 2015 por uma demanda induzida no ano anterior pela escolha do tatu-bola-da-caatinga (Tolypeutes tricinctus) como mascote da Copa do Mundo da FIFA, o Refúgio de Vida Silvestre (RVS) Tatu-bola têm sido alvo de diversas polêmicas nos últimos meses, culminando com solicitações de revogação da Unidade de Conservação (UC) por associações de agricultores.
Localizado nos municípios de Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista e Petrolina (PE), o Refúgio abrange uma área de 110.110,25 hectares. É a maior UC criada em Pernambuco, e foi categorizada como RVS para evitar a desapropriação de terras, permitindo a permanência dos moradores locais e de suas atividades, desde que compatíveis com os objetivos da UC, conforme art. 13 da Lei nº 9.985/2000 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
Polêmicas envolvendo limitações ao crédito agrícola junto ao Banco do Nordeste e ao BNDES, que recusaram financiamento em áreas dentro do RVS Tatu Bola, culminaram na expedição do Decreto nº 54.221/2022, que modificou o Decreto nº 41.546/2015 que cria o RVS Tatu-bola, permitindo que, até que seja elaborado e publicado o plano de manejo da UC, sejam permitidas diversas modalidades de uso da terra como agricultura familiar, práticas de produção orgânica ou agroecológicas, Sistemas Agroflorestais (SAF) sustentáveis, agropecuária orientada por práticas de transição agroecológica, práticas de extrativismo sustentável e manejo de apicultura e meliponicultura sustentável.
A UC abrange 345 propriedades no município de Lagoa Grande, 634 em Petrolina e 111 em Santa Maria da Boa Vista. O produtor rural e presidente a Associação Comunitária dos Campesinos Afetados pela Reserva de Vida Silvestre Tatu Bola (ASCCAMP/RVS), José Adenilson Damasceno Campos, do município de Lagoa Grande, defendeu, em audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe) em outubro de 2023, a revogação da UC. “Perdemos o direito à energia e até mesmo à patrulha de estradas vicinais”, relatou o agricultor.
Adenilson relata que a situação dos agricultores no RVS Tatu bola está “a pior possível”. “Os bancos cortaram qualquer tipo de financiamento dentro da área; as prefeituras, que já não investiam, aproveitaram a situação para não investir mais nada dentro dessas áreas; e o dinheiro do ICMS Ecológico que está vindo para as prefeituras e estado fica com os prefeitos para fazerem o que quiserem, pois não são obrigados a investir dentro da área. O agricultor está abandonado e desrespeitado nesses três municípios”.
O agricultor lamenta ainda a falta de incentivos para preservar. “A RVS Tatu bola foi criada porque nós já estávamos e ainda estamos preservando. Sou completamente contra a caça e a favor do meio ambiente. Na minha área, tenho 400 hectares e 280 estão preservados. Enquanto isso, o dinheiro está indo para as prefeituras e sendo desviado, e as outras reservas já criadas na região, como a RVS Riacho Pontal, estão totalmente abandonadas, com as pessoas caçando, tirando madeira e levando as cercas e os mourões que delimitavam as áreas”.
Além dos relatos de impactos causados pela criação da UC e da falta de incentivos, informações inverídicas como a de que a existência da RVS Tatu-bola implicaria na expropriação de terras (perda do imóvel sem direito à indenização) alimentam ainda mais a polêmica e o medo dos agricultores locais.
Para Felipe Melo, coordenador do Laboratório de Ecologia Aplicada da UFPE que participou da criação do RVS Tatu-bola, a causa do conflito é o fato de a UC ainda não contar com plano de manejo e conselho gestor. “Com um plano de manejo, o RVS poderia ser um modelo de desenvolvimento sustentável na Caatinga. Esse documento, sendo construído de maneira correta, com participação popular, poderia dirimir a maior parte dos conflitos”, defende.
O pesquisador considera que as atividades tradicionais da região são compatíveis com a UC. “Não precisamos de ‘novas tecnologias’ para conciliar a criação de caprinos e ovinos com a Caatinga. Aliás, onde domina o caprino e ovino, tem muita caatinga. Não é o caso do boi. O sertanejo já cria esses animais de maneira relativamente sustentável. É claro que pode melhorar com extensão rural, mas não é o caso de mudar modos de produção. Caatinga e caatingueiros (e seus bodes) já convivem há séculos”.
De fato, o art. 31, § 2º, da Lei do SNUC afirma que “nas áreas particulares localizadas em Refúgios de Vida Silvestre e Monumentos Naturais podem ser criados animais domésticos e cultivadas plantas considerados compatíveis com as finalidades da unidade, de acordo com o que dispuser o seu Plano de Manejo”.
Falta de gestão
O decreto de criação da RVS Tatu-bola estabelece que sua administração compete à Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), bem como a instituição do conselho gestor e a elaboração do plano de manejo, com o apoio da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) e do Comitê Executivo para Criação e Implantação das Unidades de Conservação da Natureza do Estado de Pernambuco instituído pelo Decreto nº 36.627/2011. No entanto, a UC, a maior do Estado, ainda não possui sequer um gestor responsável.
De acordo com o Sistema Estadual de Unidades de Conservação da Natureza de Pernambuco (SEUC, Lei nº 13.787/2009), em seu art. 33, § 3º, o Plano de Manejo de uma UC deve ser elaborado em até cinco anos a partir da data de sua criação. O decreto de criação da RVS Tatu-bola prevê, em seu art. 5º, a instituição do Conselho Gestor da UC em até 360 dias e a elaboração do Plano de Manejo em igual período, a partir da instituição do Conselho. Contudo, se passaram nove anos desde a criação do Refúgio, em março de 2015, e a UC ainda não possui tais ferramentas de gestão.
A CPRH instituiu um grupo de trabalho para estudar novamente a UC, que visitou a área entre 11 e 15 de dezembro de 2023 para levantar informações, comprometendo-se a entregar o resultado até o final do mês de junho. Em resposta a diversas perguntas feitas por ((o))eco, a assessoria de comunicação do órgão se limitou a dizer que, “de acordo com a Diretoria, a CPRH só emitirá informações após os estudos que está realizando na área”.
Para Felipe Melo, a demanda dos agricultores da região é real, e o Governo de Pernambuco está permitindo que haja revolta e a desinformação na região. “Enquanto os ‘parques de papel’ estão funcionando, está ótimo. Quando deixarem de funcionar, eles assistirão à derrocada e ainda irão justificar o fracasso. O Governo de Pernambuco não tem agenda ambiental efetiva”, lamentou.
Fonte: O eco